segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Tribunal Popular

O Estado Brasileiro no Banco dos Réus

Desde o final dos anos oitenta, com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e com a realização de eleições diretas para todas as esferas de governo do país, o Brasil vem sendo considerado um Estado Democrático de Direito - sendo inclusive signatário dos principais tratados e convenções internacionais que regulam os direitos fundamentais da pessoa humana. Neste ano de 2008, em que será comemorado o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU, no Brasil comemoram-se também outras datas históricas que seriam marcos da construção de uma ordem democrática, como a abolição formal da escravatura em 1888 e a já citada Constituição de 1988.
Entretanto, estas comemorações enaltecem ordenamentos jurídicos cujas garantias aos cidadãos, como se sabe, não estão sendo colocadas em prática. Muito ao contrário, no caso brasileiro, o que vemos é o Estado, por meio de agentes dos seus três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e ao nível da União e dos Estados da Federação, violar sistematicamente os direitos humanos das populações pobres do campo, das favelas e periferias urbanas (com ainda mais violência contra jovens negros, quilombolas, indígenas e seus descendentes) . A cada dia fica mais evidente que o Estado brasileiro é um dos principais agentes violadores dos direitos humanos, sendo ele justamente a instituição que, nos seus próprios termos, deveria garantir os direitos e a segurança, e promover a justiça social.
Na verdade, o que sentimos cotidianamente é que se trata de um Estado penal habituado a julgar, condenar e punir uma ampla parcela de seus cidadãos, sobretudo a maioria mais pobre (indígena e negra, em especial). Um Estado que tem procurado criminalizar cada vez mais os trabalhadores desempregados ou empregados, criminalizar exatamente as organizações, sindicatos e movimentos sociais populares que lutam pelo cumprimento dos direitos básicos renegados por ele próprio, reivindicando uma justiça social mais ampla e por esta razão sendo reprimidos com medidas verdadeiramente fascistas. Um Estado também célere em praticar prisões preventivas e manter presas sem julgamento pessoas que na maior parte das vezes cometeram (ou supostamente cometeram) pequenos delitos contra o patrimônio dos ricos ou contra a chamada “ordem social”.
Enquanto isso, assistimos o tratamento absolutamente diferenciado e privilegiado, em todos os níveis, àqueles poucos ricos e famosos cujos altos crimes vêm à tona, e que ainda assim seguem desfrutando da garantia de impunidade no Brasil e no exterior. Por outro lado, esse mesmo Estado penal aplica somente para os pequenos crimes praticados ou supostamente praticados por pessoas pobres da periferia (como furtos e o comércio miúdo de drogas) uma punição desproporcional, com penas elevadíssimas. E ainda, depois de questionável julgamento, é esse mesmo Estado penal que não respeita as garantias previstas em sua própria Lei de Execuções Penais, em grande medida pela omissão e inoperância do Poder Judiciário, muitas vezes agindo de maneira deliberada.
Como se não bastasse, a ação violenta das polícias contra movimentos sociais e comunidades pobres não só é constante (geralmente garantidas pelas históricas “ordens de despejo” e pelas rotineiras “operações militares”, ou por esta nova esdrúxula criatura jurídica batizada de “mandado de busca e apreensão coletivo”), como é comum acabar em execuções sumárias concentradas ou difusas. Tal Estado, portanto, tem também seu lado exterminador. Conforme relatório preliminar de Philip Alston, relator da própria Organização das Nações Unidas para execuções sumárias e extrajudiciais, apresentado em maio de 2008: os policiais matam em serviço e fora de serviço. Porém, nenhuma investigação é feita em relação ao pretexto para a execução, isto é: a "suspeita" e o suposto confronto. Todo caso é classificado de "Resistência Seguida de Morte" ou "Auto de Resistência", e a investigação se concentra na vida do morto. Sabe-se, no entanto, que os policiais são preparados ideológica e praticamente para matar.
Por último, é também na qualidade de Estado Democrático de Direito que o Brasil tem sido convidado a participar com destaque de missões militares e “humanitárias” da Organização das Nações Unidas. Como, por emblemático exemplo, a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), a respeito da qual a cada dia chegam mais denúncias de mortes, abusos e violências de vários tipos contra a população negra pobre daquele país. Denúncias que se somam aos crescentes indícios de que tais experiências internacionais seriam, na verdade, laboratórios militares para intercâmbio de operações repressivas desdobradas, sobretudo, contra comunidades pobres e movimentos populares nos territórios nacionais.
Diante dessa realidade, por iniciativa de uma série de organizações e movimentos sociais do Brasil, está sendo proposta a realização de um Tribunal Popular que julgue o Estado brasileiro. Um tribunal que mostre a responsabilidade do Estado por todas estas violações cotidianas, que proponha uma reflexão profunda sobre sua atuação. Nossa iniciativa pretende inverter radicalmente esta lógica unilateral que está naturalizada e acobertada pela suposta "lógica democrática", explicitando as inúmeras contradições e barbaridades da atual ordem social capitalista que tem exatamente neste Estado um instrumento privilegiado para a reprodução ampliada de suas injustiças e violências.
Por isso, propomos um Tribunal que coloque o próprio Estado no Banco dos Réus, nos moldes de várias outras iniciativas populares semelhantes, com um caráter crítico, didático e conscientizador. Vamos colocar o Estado Brasileiro diante das leis internacionais e nacionais que ele mesmo reconhece formalmente, mas não cumpre.
O Tribunal Popular, assim, se estenderá por quatro grandes áreas emblemáticas:

· Violência estatal sob pretexto de segurança pública em comunidades urbanas pobres: dentre outros, o caso do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro;

· Violência estatal no sistema prisional: a situação do sistema carcerário e as execuções sumárias da juventude negra pobre na Bahia;

· Violência estatal contra a juventude pobre, em sua maioria negra: os crimes de maio/2006 em São Paulo e o histórico genocida de execuções sumárias sistemáticas;

· Violência estatal contra movimentos sociais e a criminalização da luta sindical, pela terra e pelo meio-ambiente.
Num momento em que vem à tona a discussão sobre a “a memória e a verdade” acerca das torturas e assassinatos cometidos pela ditadura civil-miltar anterior, pretendemos deixar muito claro que toda violência contínua do Estado Brasileiro e de seus agentes, lesiva à humanidade ontem e hoje, não prescreverá jamais no juízo histórico de sua população. Nesse sentido, conclamamos todos(as) a estarem presentes, contribuírem e participarem deste processo já iniciado que culminará, nos dias 04 a 06 de Dezembro de 2008, com a realização do "Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no banco dos réus" na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito (USP), no Largo São Francisco em São Paulo-SP. Até lá, uma série de iniciativas relacionadas serão realizadas, para as quais todos(as) estão convidados (as).



ASSINAM ESTA 1ª CONVOCATÓRIA:

ALAIETS, ASFAP/BA, Associação Amparar, APROPUC-SP, Assembléia Popular, Brasil de Fato, CAJP Mariana Criola, CDHSapopemba, CIMI-SP, Coletivo Contra Tortura, Comitê Contra a Criminalização da Criança e Adolescente, Conselho Federal de Serviço Social, Conselho Regional de Psicologia 6ª região, Conselho Federal de Serviço Social, Comunidade Cidadã, CONLUTAS, Consulta Popular, Correio da Cidadania, CRP/RJ, DCE-Livre UFSCAR, DCE-Livre USP, Escritório Modelo DOM Paulo Evaristo Arns (PUC-SP), Fórum da Juventude Negra/BA, Fórum das Pastorais Sociais e CEBs da Arquidiocese de SP, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente/ SP, Fórum Social por uma Sociedade sem Manicômios, IDDH/RJ, Instituto Carioca de Criminologia, Instituto Pedra de Raio/BA, Juízes pela Democracia, Justiça Global, Kilombagem, MLST, INTERSINDICAL, Movimento Defesa da Favela, Movimento Negro Unificado (MNU), MST, NEPEDH, Observatório das Violências Policiais de São Paulo (OVP-SP), ODH Projeto Legal, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência/RJ, Quilombo X/BA, Reaja ou será mort@/BA, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Resistência Comunitária/BA, Sindicato dos Advogados de SP, SINTUSP, Tortura Nunca Mais/RJ

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Ato Pela Retirada das Tropas Brasileiras do Haiti

ALESP, 20.08.08, Auditório Franco Montoro


Por David Josué

Sinto-me grato, honrado e com humildade falo a vocês em nome dos haitianos que não mais estão vivos para falar e em nome de todos os haitianos e amigos do Haiti que desejam uma solução pacífica e não militar para a situação no Haiti.
Todos nós gostaríamos de virar a página e começar tudo de novo, com um Novo Haiti; um Novo Haiti onde todos os haitianos em toda parte, e pessoas que descendam de haitianos em qualquer parte possam participar constitucionalmente do Renascimento do Haiti.
É chegado o tempo de calar as armas.
É chegado o tempo para a paz duradoura.
Pelo bem do Haiti, é chegado o tempo de Trégua no Haiti e do fim da luta armada.
É chegado o tempo para que a atual presença militar no Haiti chegue ao fim. A manutenção da lei e da ordem num perímetro urbano é uma questão policial e não para tropas militares. O Haiti necessita de assistência da força policial, ajuda financeira, de trabalhadores humanitários e da ajuda dos haitianos de toda parte para participar do desenvolvimento do Haiti.
É chegado o momento de os haitianos agirem pró-ativamente no sentido de prepararem-se para assumir a responsabilidade que os aguarda depois que a MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) partir. Atualmente, a MINUSTAH representa, em princípio, a Estabilização mas, na prática, é a ocupação.
É chegado o tempo de os soldados saberem quando voltarão para casa, para seu amado Brasil, e os outros, para suas respectivas terras natais. Muito freqüentemente, o emprego de soldados brasileiros e de outros soldados estrangeiros - nas já depauperadas vizinhanças do Haiti - para prender um ou dois transgressores resulta na desafortunada morte de mulheres, crianças e espectadores. O que os Brasileiros que lideram os soldados das Nações Unidas fizeram a pessoas inocentes do Haiti é pior do que as Forças Armadas do Haiti foram acusadas de fazer. Imaginem os desarmados, já assustados e traumatizados civis que falam ‘Creoule’ tentando reagir a soldados que lhes gritam ordens em português, árabe, cingalês, tâmil ou em espanhol.
Já faz quatro anos que as famílias no Haiti estão vivendo com medo das tropas estrangeiras e também são forçados a pagar grandes somas pelo retorno de pessoas queridas que são seqüestradas em função da urgência de seqüestradores, recebendo em troca apenas corpos mutilados e sem vida...
Testemunhas oculares e sobreviventes relataram que, durante uma partida de futebol organizada em prol da paz em Martissant, muitos foram metodicamente executados no estádio, enquanto as tropas assistiam sem nada fazer, como em Ruanda.
O que será necessário para que se investigue o que houve de errado naquele dia?
Tudo aquilo de acordo a soma de $535,372,800.00 ao ano, $44,614,400.00 ao mês, $1,593,371 ao dia... sim, isso significa um custo de $66,390 por hora para manter os soldados no Haiti e isto vem ocorrendo há quatro anos.

Ainda assim, a fome, a insegurança e a segregação politica estão em vantagem, enquanto as mortes de civis inocentes são numerosas.
Face à fragilidade das construções em Cite Soleil e do poder das forças armadas com seus projéteis, capazes de penetrar em metais, madeira e casas de concreto, quantos alvos esperava-se que as tropas atingissem ao disparem 22,000 rodadas de munição numa populosa área de civis? Aquilo foi escandaloso e exagerado, considerando a evidente vantagem militar das tropas, de um lado e, de outro, as perdas e danos para a população civil - o que poderia ter sido evitado. Em 3 de Julho de 2008, o mundo tomou conhecimento de que 15 reféns foram resgatados das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e nenhum tiro foi disparado. O General Freddy Padilla disse “queríamos que acontecesse como foi hoje, sem um único tiro, sem nenhum ferido, totalmente sãos e salvos e sem nenhum arranhão”.
As tropas das Nações Unidas, lideradas por Brasileiros, ao contrário, adentraram Cite Soleil para prender um homem, sob pretexto de que ele mantinha a população refém através de intimidação e outras alegações; 10,000 disparos foram feitos de pesadas armas automáticas e canhões de 30mm naquela populosa favela à beira-mar. O suspeito pelo qual procuravam não foi encontrado. Não obstante, deixaram uma trilha de desastre e um precedente terrível para trás.
Como, então, podem pedir-nos para confiar nestes soldados, quando pelo programa SAVE THE CHILDREN (Salvem as Crianças) o mundo tomou conhecimento sobre o envolvimento de soldados das Nações Unidas em estupros, exploração sexual e tráfico de mulheres e crianças de até 6 anos de idade no Haiti e no Sudão?
Serão lembrados todos os bebês, crianças, homens e mulheres que encontraram a morte prematura pelas mãos da missão liderada por brasileiros. Eles não podem simplesmente ser esquecidos como se fossem Danos Civis Colaterais; o Haiti não está em guerra.
Eu gostaria que o Brasil fosse lembrado como o país que tornou possível a paz no Haiti, sem o uso de uma solução militar.
A postura dos soldados não induz a confiança na população civil de que seja uma Missão de paz, mas induz à população na crença de que a missão se voltou contra civis desarmados, os quais haviam jurado proteger. A estabilização, no nome, mas ocupação, na prática, é um problema.
A solução haitiana não é militar. Não vou adotar uma postura nacionalista incerta; nós iremos precisar da assistência de nossos amigos em diversos projetos. Precisaremos de tratores para a agricultura, mas não precisaremos de tanques e outras armas de guerra.
Precisamos vivenciar a implementação de políticas voltadas para o povo, que reconstruirão o Plaine du Sud, o vale de Artibonite e as cestas de pães do Haiti uma vez mais.
Segundo um Artigo da Associated Press, publicado no Miami Herald em 20 de julho de 2008, que foi citado num Relatório de uma Agência Norte-Americana de Desenvolvimento Internacional “…da efusão de garantias internacionais, que incluíram mais de 40.000 toneladas de alimentos cuja finalidade era amenizar a emergência, no início de Julho de 2008, menos de 2% tinham sido distribuídas”.
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que não queria que se repetisse no Haiti a matança e o caos ocorridos em Ruanda depois da partida da MINUSTAH. Estas palavras são a prova de que ele é um homem de compaixão e a compaixão não é apenas uma virtude, mas uma obrigação.
A história agradecerá Vossa Excelência por comandar a retirada pacífica das tropas no Haiti e evitar a perda das vidas que mencionou.
Distintos Membros do Congresso Brasileiro, seu país aceitou o papel de Nação Líder no Haiti e vocês devem ter motivos por terem feito isso. Portanto, eu lhes peço que ouçam seus eleitores e apóiem a Agenda para a Paz e Reconciliação, bem como para o fim das operações militares no Haiti.
Peço às Igrejas que não permaneçam caladas diante de nossos problemas e que o clero não permaneça inepto.
Por favor, acabem com a ocupação em memória das crianças inocentes que morreram e dos órfãos que estão lutando para sobreviver a todas as desigualdades.
Quando as famílias brasileiras falarem sobre o Haiti, que seja sobre férias ou oportunidades de negócios, mas não sobre onde seus entes queridos perderam a vida.
Quando as famílias haitianas pensarem sobre o Brasil, que seja no sentido de tentar igualar-se à história de sucesso desta república, mas não de soldados brasileiros que dispararam as armas de guerra que mataram seus entes queridos.
Nenhuma vida deve ser apagada. Nem a dos soldados brasileiros, nem a de cidadãos do Haiti.
Nós os povos da América Latina, do Sul e Central e das Ilhas Caribenhas, devemos viver em paz.
A fome, a doença e a morte têm sido nosso fardo por longo tempo, mas nada fere mais do que a total indiferença dos demais.
Os novos líderes se vangloriarão das vidas que salvaram, mas não das vidas que tiraram para conseguir suas patentes.
A todos dentre vocês que apóiam a retirada imediata das tropas do Haiti, agradeço em nome daqueles cujas vidas não foram poupadas no Haiti.
O povo haitiano tem muitos amigos ao redor do mundo; nós recordaremos sempre de sua bondade de coração.
As comunidades Progressistas ao redor do mundo permanecerão vigilantes em seu apoio por um Haiti pacífico.
Estendo minha mais profunda gratidão ao Partido dos Trabalhadores do Brasil, à Juventude Revolução, à L’Union General des Travailleurs de Guadeloupe, à Association des Travailleurs et Peuples de la Caraibe, à Travaye e Peyizan, ao Movimento Negro Unificado, aos representantes eleitos da República Federativa do Brasil, aos estudantes de todo Brasil; a vocês e a todos os demais digo muito obrigado por apoiarem a paz no Haiti.
Meus irmãos e irmãs no Haiti estão morrendo de fome pela paz, ordem e união; os haitianos não perderam seu poder de recuperação e sua determinação para alcançar o sucesso. Nossa força encontra-se dentro de nós; retiraremos força de nossas conquistas do passado e, com a ajuda de nossos amigos, forjaremos uma solução pacífica para este impasse.

Obrigado por convidar-me e viva a amizade brasileira-haitiana.
Veja a fala do Coordenador Nacional de Relações Internacionais do MNU Milton Brabosa no ato:

terça-feira, 2 de setembro de 2008

CARTA DA JUVENTUDE DO MNU - SÃO PAULO

CARTA DA JUVENTUDE DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO - SP SOBRE OS PROCESSOS DO ENJUNE, FONUNE E CONJUNTURA EM QUE ESTÃO INSERIDOS.
"Assim, numa breve definição, a Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação". (Steve Bantu Biko).
A juventude do MNU no Estado de São Paulo, ciente da responsabilidade que carrega ao representar uma entidade com 30 anos de história, utiliza-se deste documento para se manifestar sobre os processos do ENJUNE, FOJUNE e a conjuntura em que os mesmos estão inseridos.
O MNU
"O MOVIMENTO NEGRO Unificado – MNU – é uma organização política de articulação e defesa dos interesses das negras e dos negros no Brasil. Tem se guiado pelo permanente combate ao racismo, na luta pela superação das desigualdades que atingem os descendentes de africanos, posicionando- se sempre de forma autônoma, denunciando os ardis da sociedade racista brasileira e agindo de forma propositiva nos debates com variados setores da sociedade.
O MNU ainda mantém o caráter revolucionário que caracterizou sua fase embrionária, contestando a ordem política, econômica e cultural constituída há cinco séculos pela elite branca brasileira. Esta, através do aparelho do Estado, tem criado políticas que asseguram o protagonismo dos valores civilizatórios europeus, subjugando a população negra a uma situação de extrema exclusão".
(O Triunfo de Prata, MNU, Bahia, 2005)
Um pequeno passeio pela história.
Em 18 de junho de 1978, após diversas reuniões articuladas com diferentes organizações do MOVIMENTO NEGRO, foi decidida a fundação do MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL (MNUCDR). Essa decisão foi tomada com o objetivo de mobilizar e organizar, de norte a sul do Brasil, o maior número possível de organizações negras com vistas a denunciar a discriminação racial e a repressão policial.
Foi então, que no dia 7 de julho de 1978, em uma manifestação histórica, o MOVIMENTO UNIFICADO convidou os ativistas do MOVIMENTO NEGRO e pessoas sensíveis à causa dos descendentes de africanos para a sua primeira atividade pública: um ato contra o racismo, que reuniu mais de três mil pessoas, em frente às escadarias do Teatro Municipal, no Centro da cidade de São Paulo. O MNUCDR, rebatizado em dezembro de 1979 durante o seu 1º. Congresso realizado no Rio de Janeiro passa a chamar-se de MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO (MNU) nome que conserva até hoje.
A partir da fundação do MNU, o MOVIMENTO NEGRO vai se nacionalizando. O discurso de denúncia ao racismo toma novo fôlego, fortalecendo- se e influenciando nos rumos da luta contra a discriminação racial e pela inclusão. Já no inicio da década de 1980, multiplicam- se as diversas organizações e grupos negros. A questão étnico/racial passa a ser vista como um dos impasses nacionais a serem solucionados para a construção de um novo país. A questão do racismo, da dívida histórica, da falsa democracia racial e do significado da Abolição; passam a ser tema de discussões e estudos.
É importante ilustrar aqui a alcance da luta negra neste país. Uma breve consulta as reivindicações do MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, nos seus trinta anos, dá uma idéia de sua abrangência. Em primeiro lugar, o MNU recusou a data oficial de celebração da incorporação dos negros à nação brasileira, o 13 de maio, data da abolição da escravidão, passando a festejar o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, que chefiou a resistência do quilombo dos Palmares em 1695; em segundo lugar, passou a reivindicar uma mudança completa na educação escolar, de modo a extirpar dos livros didáticos, dos currículos e das práticas de ensino os estereótipos e os preconceitos contra os negros, instilando, ao contrário, a auto-estima e o orgulho negros; em terceiro lugar, exigiu uma campanha especial do governo brasileiro que orientasse a população negra (pretos e pardos) de modo a se declarar "preta" nos censos demográficos de 1991 e 2000; em quarto lugar, reclamou e obteve a modificação da constituição para transformar o racismo em crime inafiançável e imprescritível, tendo, posteriormente, conseguido passar legislação ordinária regulamentando o dispositivo constitucional; em quinto lugar, articulou uma campanha nacional de denúncias contra a discriminação racial no país, pregando e alcançando, em alguns lugares, a criação de delegacias especiais de combate ao racismo.
"Há 30 anos o MNU atua amplamente no debate político nacional, transformando as agendas das instituições, dos partidos, sindicatos, gabinetes, agremiações, centros acadêmicos, do próprio Palácio do Planalto, enfim, em toda sorte de espaços, dentro e fora do Estado. Derrubamos o véu de mentiras que encobria o racismo sob a falácia da "democracia racial". O MNU é o carrasco da democracia racial e seu coveiro". (O Triunfo de Prata, MNU, Bahia, 2005).
Juventude Negra
"Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério". (Malcolm X)
É vergonhosa a forma como os jovens negros brasileiros são tratados. TODOS os indicadores sociais apontam os jovens negros como base da pirâmide social. Somos as vitimas preferenciais de todos os tipos de violência, não temos acesso a educação de qualidade, o mercado de trabalho nos trata como reserva de mercado, nossas expressões culturais são marginalizadas, somos tidos como massa de manobra por grupos econômicos e políticos, inclusive da esquerda.
O combustível para o radicalismo é oferecido pelo próprio Estado brasileiro, onde os jovens pretos se tornam reféns, sendo caçados, perseguidos, afrontados, destratados, detidos, marginalizados e assassinados diuturnamente, a prova disto nos é esfregada na cara cotidianamente. O Estado e o Capital branco apropriam-se de toda nossa produção em todos os níveis, no trabalho agrícola, na produção industrial, nas relações comerciais, na manufatura artesanal e mesmo na produção cultural.
"Diz-se correntemente que o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade". (Frantz Fanon)
Até hoje somos tratados como homens e mulheres invisíveis, relegados, em sua maioria ao lugar que nos foi reservado, na maioria dos casos em funções de baixo escalão. Apenas poucos entre os milhões que compõem o nosso povo, neste país-cativeiro, conseguem escapar desta lógica sinistra. Mesmo assim, além das já conhecidas desculpas oficiais, ouvimos o que hoje já se tornou chavão: "Aos poucos estamos chegando lá".
O poder da polícia, dos meios de comunicações e da política de cooptação, através de seu poder de calar, convencer e comprar; levam vários dos nossos irmãos a fazer o trabalho sujo de nos intimidar, agindo diversas veses como capitães do mato, minando nossos anseios. A indignação, a revolta, o ódio, a humilhação e a magoa, não são apenas sentimentos isolados das vitimas diretas das forças acima citadas. Milhões de irmãos e irmãs, no Brasil e no mundo estão potencialmente prontos para admitirem que não estão satisfeitos e tem motivos de sobra para não serem simpáticos. É crescente a fúria contra este Estado que escandalosamente nos oprime, e perceptível o anseio no sentido da construção de um Estado em que sejamos não somente livres, mas efetivamente independentes.
"Para isso, é preciso destruir os seus sistemas de referência. A expropriação, o despojamento, a razia, o assassínio objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esvaziados". (Frantz Fanon)
ENJUNE - FOJUNE
"Sei que estamos nessa luta por um tempo indeterminado, que não vamos resolver esse problema nem hoje nem amanhã. Portanto, temos que aprender a manter a alegria, mesmo quando enfrentamos grandes dificuldades". (Ângela Davis)
O sangue dos guerreiros quilombolas que corre em nossas veias, nos leva a constantes momentos de insurreição, o processo de organização do ENJUNE e a consolidação do FOJUNE se mostram como tentativas de organizar e promover novas alternativas no contexto étnico-racial. Os jovens, elementos da vanguarda da luta étnico-racial, estão construindo e conquistando efetivamente seu espaço, em uma batalha muitas vezes silenciosa.
O ENJUNE cumpriu o seu papel de promover o encontro das diferentes concepções de juventudes negras, sistematizar suas principais demandas e propostas e dar o passo inicial em relação à criação do Fórum Nacional de Juventude Negra.. Fora dos centros hegemônicos de produção de grandes encontros nacionais, propiciou a interlocução não apenas de juventudes de estados e regiões diversas, mas de concepções políticas, culturas e conhecimentos teóricos e empíricos diferentes.
A organização e o lançamento político do FORUM NACIONAL DA JUVENTUDE NEGRA e sua repercussão nacional nos leva a acreditar ser este o momento de utilizarmos esta frente de luta nacional como ferramenta reivindicatória e de intervenção efetiva. É necessário avaliarmos seriamente qual o percurso político que desejamos para o FOJUNE e principalmente qual tipo de relação interna que queremos construir entre os diversos grupos de jovens negros que compõem o FÓRUM.
São nestes momentos que devemos refletir e analisar as boas lições que herdamos de nossos grandes pensadores, Steve Biko nos dá algumas pistas:
"... O que se deve ter sempre em mente é que:
1. Somos todos oprimidos pelo mesmo sistema;
2. Ser oprimidos em graus diferentes faz parte de um propósito deliberado para nos dividir não apenas socialmente, mas também com relação às nossas aspirações;
3. Pelo motivo citado acima, é preciso que haja uma desconfiança em relação aos planos do inimigo e, se estamos igualmente comprometidos com o problema da emancipação, faz parte de nossa obrigação chamar a atenção dos negros para esse propósito deliberado;
4. Devemos continuar com nosso programa, chamando para ele somente as pessoas comprometidas e não as que se preocupam apenas em garantir uma distribuição eqüitativa dos grupos em nossas fileiras.
Esse é um jogo comum entre os liberais. O único critério que deve governar toda nossa ação é o compromisso."
(Steve Bantu Biko).
DISPUTAS
"Estamos por nossa própria conta". Esta é a idéia da qual negros, em vários pontos do mundo, partiram para estabelecer a própria libertação. É também uma idéia gerada pela constatação de que a organização independente do negro resulta dos empecilhos colocados por todo espectro de forças políticas que atuam na sociedade". (Programa de ação, MNU, Belo Horizonte, 1990).
Acerca das disputas, diferenças e atritos que ocorreram nos processos do ENJUNE e FOJUNE é preciso, mais uma vez, nos remetermos a experiência histórica e lembrar que dentre as terríveis atrocidades dos assassinos que administravam o Tráfico Transatlântico de Escravos, uma das mais perversas foi a criação de estratégias de divisão dos reinos e nações africanas, com o intuito já clássico na época de "dividir para conquistar". Esta estratégia foi utilizada também nas Colônias, onde existia esta mesma preocupação, que os levava a colocar preferencialmente, em uma mesma fazenda, africanos de diferentes línguas e culturas; com o intuito de dificultar a organização e impedir levantes. Muito desta estratégia funcionou, mas o espírito e a cultura africana sobressaíram- se em diversos momentos, a exemplo das diversas insurreições e a disseminação de inúmeros Quilombos. Infelizmente, algumas destas estratégias persistem até hoje, e vemos, diuturnamente, situações em que nos voltamos contra nos mesmos. Um exemplo atual e extremamente gritante foi a realização das duas Marchas, em 16 e 22 de novembro, que apesar de possuírem praticamente as mesmas metas e objetivos, sofreram forte influencia de fatores externos que contribuíram profundamente para o acontecimento deste "racha". Diante desta conjuntura, uma das alternativas colocadas durante o processo do ENJUNE foi a da desconstrução desta lógica das divisões e da construção de um projeto coletivo, que objetive propostas e ações concretas para o combate ao racismo e a promoção da igualdade de oportunidades. Contudo nos momentos de discussão política, geralmente tensos, nos deixamos levar e tomamos atitudes por vezes questionáveis. Isso vale para todos, independentemente do nível intelectual ou de compreensão política.
"Não acredito que um relacionamento puro tenha de terminar sempre em violência. Não acredito que tenhamos de ser fraudulentos e simuladores; porque esta é a fonte das dificuldades futuras do fracasso. Se projetarmos imagens fraudulentas e simuladas, ou se fantasiarmos um ao outro em caricaturas destorcidas de que realmente somos, então, quando acordarmos do transe e olharmos além da falsidade e das aparências, tudo se dissolverá, tudo morrerá e se transformará em rancor e ódio". (Edridge Cleaver).
É importante ressaltar que o MNU acredita sim que os negros e negras tem de estar em todos os lugares, esta foi uma bandeira que nasceu no interior desta organização e se apresenta nos seus documentos-base. O programa de ação de nossa entidade nos orienta da seguinte forma: "o MNU deverá orientar a atuação de seus militantes nas Associações de Moradores , de profissionais , nos Diretórios Acadêmicos , nos Sindicatos e Partidos Políticos, na perspectiva de multiplicar as adesões ao seu Projeto Político de médio e longo prazos". Com efeito, qualquer alegação que venha a insinuar que o MNU faz um discurso contrário se mostrará completamente equivocada. Da mesma forma, programa de ação do MNU afirma que a independência do MOVIMENTO NEGRO não pode ser entendida apenas em relação aos demais setores organizados da sociedade. É preciso encarar as contradições internas existentes no conjunto do MOVIMENTO NEGRO como algo indiferenciado do ponto de vista político.
De fato, queremos que os negros ocupem os espaços políticos, porém acreditamos que, uma vez nesses espaços, é fundamental que se cumpra o seu papel e realize as disputas necessárias para ocupar as direções e não simplesmente se contente em ser base ou ocupar postos de terceiro ou quarto escalões. Hoje, é prioridade organizar o negro onde ele vive, construir suas formas organizativas, construir o seu movimento.
Em seu artigo, "A dissimulação do branco de esquerda", o jovem negro Lourenço Cardoso, nos alerta:
"O branco de esquerda, além dos votos, insiste para que o negro entre em seus partidos, entidades, ONGs, associações para submeter o negro as suas idéias e direção. Eldridge Cleaver teorizou que o branco, simbolicamente, considera: "O negro como corpo e o branco como cérebro: o corpo deve ser submetido ao cérebro" ("Alma no exílio" pp. 152-3). O branco procura submeter o negro, aceita que o negro vá longe "torne-se ministro", jamais assumir o poder principal."
O que efetivamente esperamos é que os militantes que ocupem esses espaços, o façam carregando não apenas a identidade do MOVIMENTO NEGRO, mas principalmente suas determinações e seu compromisso histórico com o povo negro – possuam, de fato, a autonomia para dar condição à luta. Se essa autonomia for ameaçada ou questionada pelas forças político partidárias, então caberá a cada um de nós a atitude necessária para enfrentar estes espaços. Vale lembrar que são vários os meios para efetivar a luta, Malcolm X fez essa afirmação há 45 anos atrás.
"E eu tinha total consciência de que poderia influenciar a vida Política sem estar em um partido. Aliás, a condição é não estar. Não estar é também uma convicção e uma estratégia. Porque estando, dificilmente pode-se dizer o que se pensa" (Milton Santos).
A luta da juventude negra, indiscutivelmente, parte indissociável do MOVIMENTO NEGRO, já ocupa um lugar histórico na luta pela libertação do povo negro. As importantes participações em espaços de discussão nacionais e internacionais demonstram que nossa capacidade de luta e organização vem sendo pautada por um olhar afrocentrado, que busca a superação das diversas formas de dominação e exploração a que fomos e estamos sendo submetidos em África e na diáspora.
A juventude negra tem um papel muito particular na história de luta do MOVIMENTO NEGRO. Neste momento de reorganização é importante que estejamos atentos para as armadilhas que se avizinham e que certamente tentarão frustrar nossos projetos. Temos grandes desafios a superar, o primeiro certamente é garantir que continuemos vivos para dar continuidade a luta, neste sentido foi apontado a efetivação da CAMPANHA CONTRA O EXTERMINIO DA JUVENTUDE NEGRA. Também é importante que reunamos as ferramentas e meios necessários para enfrentar essa luta, e dessa forma apontamos a necessidade de estratégias de formação e de acesso a formação acadêmica. Outras demandas também foram levantadas, todas apontando para a superação das desigualdades e do racismo. A construção de estratégias para dar prosseguimento a luta constitui um desafio admirável, porém, acreditamos que a juventude negra militante esteja disposta a enfrentar estes desafios de frente.
A juventude do MNU tem plena consciência de sua responsabilidade com o MOVIMENTO NEGRO e com o povo negro. Sabe que deverá honrar a história da organização e cumprir um importante papel na luta de libertação do povo negro. Diante disso, não irá descansar ou titubear em momento algum, ao contrario, se fará sempre presente e disposta a enfrentar o que for preciso para garantir as bandeiras históricas do MOVIMENTO NEGRO.
"Portanto, quanto mais gente se unir, quanto mais unidos estivermos, nós correspondemos àquilo que todo o mundo sabe e que é: a união faz a força. Se eu tirar um palito de fósforos e o quiser quebrar, quebro-o rapidamente; se juntar dois, já não é tão fácil, três, quatro, cinco, seis, chegará um dado momento em que não poderei quebrar". (Amílcar Cabral).